• Por Humberto

Diários inéditos do poeta

De seus diários, Drummond não preservou apenas as páginas que aproveitaria para compor O Observador no Escritório. Separou outro maço de folhas, e o confiou à filha Maria Julieta. Ao nomeá-la sua testamenteira literária, não poderia saber que ela morreria 12 dias antes dele, em 5 de agosto de 1987.

De modo natural, o pequeno tesouro ficou nas mãos de Pedro Augusto Graña Drummond, o caçula dos três netos do poeta – e ele, recentemente, o embalou em livro, Uma forma de saudade – Páginas de diário, publicado pela Companhia das Letras em outubro de 2017.

Belo no conteúdo e na concepção gráfica, com farta iconografia que inclui fac-símiles de páginas de diário, Uma forma de saudade consiste na reunião daquilo que Carlos Drummond de Andrade escreveu por ocasião da perda de pessoas especialmente queridas – o pai, a mãe, os cinco irmãos e uma cunhada, além de dois amigos diletos, Manuel Bandeira e Rodrigo M. F. de Andrade.

Quem leu também O Observador no Escritório poderá reconhecer, na nova fornada de diários, alguma coisa que está também no livro de 1985; uma passagem sobre a mãe, Julieta Augusta, outra sobre Manuel Bandeira. A diferença, nesses trechos, é que no primeiro livro Drummond editou e encurtou os registros que fizera em seus cadernos, e que em Uma forma de saudade vão aparecer de forma bruta, digamos, sem a mesma pretensão literária, carregados ainda das emoções não editadas dos instantes em que foram postos no papel.

Não há, em termos de espaço, a menor preocupação em conferir isonomia ao tratamento dos mortos queridos. Não se pode dizer que Carlos amava menos o irmão mais velho, Flaviano, o Vivi, pelo fato de dedicar a ele uma página apenas, enquanto Altivo está em seis, e José em nada menos de catorze. Não gostava menos de Rodrigo, de cujo fim se ocupa em três páginas, do que de Bandeira, esparramado em dezenove.

Ainda que não houvesse a intenção, os volumes de texto certamente foram determinados pela quantidade e interesse das informações – e, no tratamento delas, sem prejuízo das emoções às vezes avassaladoras, Carlos Drummond de Andrade se mostra um repórter afiado, capaz como poucos de ver e ouvir, o que não espanta da parte de quem foi, intermitentemente, jornalista apaixonado pelo ofício. Ainda quando o coração sangrava, os olhos e os ouvidos não se fechavam ao que houvesse em torno, por macabro que pudesse ser.

Assim, doentes e defuntos muito amados são descritos com rigor naturalista que haverá de chocar alguns leitores. O poeta não deixou de registrar, por exemplo, no velório de Rosa, a irmã mais velha, “o cheiro da decomposição acelerada” que “o perfume derramado mal encobria”. Ou o corpo já vestido do “pobre Manuel”, num necrotério de hospital, “à espera de caixão”, a boca aberta deixando ver “um chumaço de algodão”.

Do mesmo Bandeira, Drummond registrou algo mais ameno, nada mortuário – uma declaração surpreendente de quem, nem sempre com êxito, buscou a vida inteira evitar “casos com mulheres de temperamento difícil”. Numa cama de hospital, o poeta de tanta delicadeza declarou aos amigos Carlos e Rodrigo: “Acho que esse negócio de trepar deveria ser uma coisa simples; duas pessoas se encontram e, como se desejam, vão dormir juntas, sem necessidade de romance”. E arrematou: “Justamente para evitar casos complicados é que tenho deixado de comer muita mulher boa nesse mundo.” Drummond, seu amigo desde os anos 1920, não deixaria de anotar: “É a primeira vez que Manuel me fala de seus amores”.

O rigor naturalista se manifesta, também, e copiosamente, na descrição da mãe ainda viva, com uma das pernas tão deformada pela doença que para acomodá-la foi necessário providenciar caixão com forma irregular. Caixão que Drummond terá outra vez sob seus olhos seis anos mais tarde, quando voltou a Itabira para assistir à exumação dos ossos de dona Julieta Augusta e levá-los para o túmulo do marido no cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte. Mórbido, detalhista, o poeta descreve o achado, primeiro, de um maxilar, e, depois, de um crânio revestido de terra que ele e o irmão Altivo cuidaram de remover. O caráter melancólico da exumação da mãe não impediu, porém, que Drummond observasse a fala saborosa de um dos coveiros em meio à função. Mais tarde, no Bonfim, ele se emocionará ao ver seus velhos de novo reunidos, como queria dona Julieta Augusta.

No terreno das revelações, Uma forma de saudade conta o que talvez só os mais chegados soubessem, que a caçula e “ai-jesus” do clã, Maria das Dores, a Mariinha, ao cabo de infortúnios vitalícios, suicidou-se com 25 comprimidos de Seconal. Na mesinha de cabeceira, o irmão encontrou um exemplar recente do Correio da Manhã, e nele uma crônica sua sobre uma menina que, num hospital de Paris, esperava receber cartões postais antes de morrer. Não se fica sabendo se sobre o corpo de Mariinha se aspergiu um perfume de Guerlain que ela reservara para esse fim. Embora não se tenha matado, Rosa, a outra irmã, também se preparara para o fim. Quando o filho a encontrou morta, “a mais bela moça de seu tempo em Itabira” tinha posto “seu melhor vestido” e o seu mais novo par de meias.

Uma forma de saudade ilumina de modo especial aquele que, dos seis irmãos chegados à idade adulta (oito ficaram na infância), foi o mais estranho: José, quatro anos mais velho que o poeta e seu companheiro na meninice itabirana. Ali está, com suas desconcertantes nuances, um homem de poucas palavras, capaz ao mesmo tempo de “admirável dedicação” e “de uma selvagem brutalidade”.

Encerrado em si mesmo, José, belo homem dado a mulheres, viveu seus últimos 22 anos com uma delas, romance do qual não nunca fez alarde e que no início lhe valeu troca de sopapos, na rua, com um marido traído. Mas nem a Aída abria ele inteiramente o coração. Nunca lhe disse quantos anos tinha. “Só agora”, disse a viúva no velório ao cunhado poeta, a quem fora apresentada pouco antes, “vim a saber que fazia anos em 13 de agosto.” Tampouco Carlos, apenas menos gauche do que o mano, sabia muito do que se passara no atormentado coração de José, que ao morrer fez dele o último sobrevivente dos Drummond de Andrade. “A culpa seria da natureza”, arriscou em seu diário, “por nos ter feito assim aos dois, se é que poderia fazer-nos de outro modo.”

Veja também