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Carlos e Humberto: o biografado e o biógrafo

Ao descobrir a poesia de Carlos Drummond de Andrade quando ainda era adolescente, Humberto Werneck se deparou com enigmáticos versos: "tal uma inteligência do universo/ comprada em sal, rugas e cabelo". O que estava querendo dizer Drummond com "comprada em sal, rugas e cabelo", linhas finais do poema "Versos à boca da noite" do livro A rosa do povo? Hoje, seis décadas depois, Humberto recorda o episódio e ri de si jovem, incauto, penetrando no reino das palavras do poeta itabirano pela primeira vez. Afinal, o suor salgado, as rugas adquiridas e os cabelos perdidos a que Carlos se referia no poema são alguns dos diversos efeitos colaterais de uma vida dedicada à escrita. Tornado jornalista e escritor, Humberto, que não perdeu os cabelos (estão apenas mais grisalhos), transformou sua admiração de longa data pela vida e obra do autor de A rosa do povo em um projeto ao qual vem se dedicando há anos:  a biografia de Carlos Drummond de Andrade.

"A minha ambição, que não é pequena, é de apresentar um Drummond mais credível, mais concreto, mais conforme a realidade". Werneck sabe muito bem que "essa coisa de objetividade" não existe. "Mas a perseguição é essa!", afirma. Não é a primeira vez que o jornalista belo-horizontino tem diante de si o monumental desafio de escrever uma biografia: em 2008 publicou Santo sujo, a vida de Jayme Ovalle, trabalho de quase duas décadas de pesquisa, premiado com o troféu APCA de melhor biografia. Com Drummond, porém, as dimensões são diversas e maiores. "O poeta vivia dizendo que a vida dele foi a de um homem comum, sem grandes acontecimentos. Pois sim!", afirma Humberto, "O que posso dizer a esta altura é que a biografia não caberá em menos de 500 páginas". Certamente a maior parte dessas páginas contará com os infindáveis episódios, “causos”, confissões e manias atribuídas a Drummond que o biógrafo vem colecionando com extremo cuidado ao longo dos anos.

Outro aspecto decisivo na empreitada do biógrafo era sua proximidade com o biografado. Próximo do poeta desde a famosa reportagem de capa que fez para a revista Veja em 1977, Humberto vem escrevendo nas últimas cinco décadas substanciosos textos acerca da vida de Drummond. Em 1986, inclusive, tentou em vão publicar um livro de entrevistas com o poeta que, cordialmente, declinou a proposta. Drummond morreria no ano seguinte, mas o projeto permaneceu na cabeça do jornalista. Em 1992, Humberto publicou um livro "nada simples de rechear", O desatino da rapaziada, onde conta a(s) grande(s) história(s) da vida jornalística e literária mineira do século XX. Lá já se encontra "um bocado do Carlos Drummond de Andrade em sua juventude belo-horizontina", afirma Werneck. O século XXI, portanto, tratou de oficializar de uma vez por todas o compromisso inescapável do jornalista.

A biografia definitiva de um dos poetas mais importantes do Brasil está prevista para 2022, ano em que se comemora o seu aniversário de 120 anos. Werneck não gosta do adjetivo "definitivo", afinal, "outros biógrafos virão mais adiante". Mas sabe que sua incumbência não é pequena: "o esforço é de chegar perto dessa figura, desenhá-la da maneira mais exata possível." E pondera: "Volta e meia me ocorre que ele gostaria que eu não contasse tal coisa. Ele administrava sua própria imagem, como todos nós, mas ele mais ainda."

Drummond tornou-se mito, pedra fundamental da literatura brasileira. Não há fato que o demoverá de sua posição de poeta que faz "acordar os homens e adormecer as crianças", como bem escreveu em sua "Canção amiga". "Drummond é um cara que vai continuar falando para os homens enquanto houver homens. Há um Drummond essencial que fala para você, que fala para mim, não do alto de um púlpito. O Drummond é um cara que, com o devido respeito, está sentado ao meu lado no meio fio, me falando aquelas coisas. Sempre vai haver um meio fio, sempre vai haver interlocutores, gente que vai se deixar tocar pelo que existe de atemporal na poesia de Drummond." Por fim, Humberto confessa: "Eu gosto tanto desse cara que eu queria contar direito a história dele".

 

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