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Drummond e o irmão do filho único

          Quem primeiro chamou Drummond de “urso polar” foi ele mesmo, assumidamente, num poema célebre, “Apelo aos dessemelhantes em favor da paz”, no qual se insurgiu contra quem ameaçasse o seu sossego. Era o caso, por exemplo, de professores que não hesitavam em mandar seus alunos à caça do “urso-polar”, para trazê-lo vivo e “fazer uma conferência”.

Exasperação à parte, o poeta era por feitio um homem reservado. Aos 47 anos, no artigo “Divagação sobre as ilhas” (no livro Passeios na ilha), cuidou de emitir sinalização nítida a seus semelhantes e dessemelhantes, delimitando o convívio social que lhe convinha: para ele, “a arte do bem viver” impunha “uma fuga relativa” e “uma não muito estouvada confraternização”. Não é de estranhar que amigos muito queridos – entre eles, Manuel Bandeira, que disso se queixava – jamais tenham sido acolhidos sob o teto do escritor itabirano.

          Por isso mesmo, é espantoso que o poeta, certa vez, tenha não só acolhido como proporcionado mesa e cama a alguém que nunca tinha visto até então. Mais surpreendente ainda quando se sabe que a poucos metros do desconhecido dormiam Dolores e Maria Julieta – a mulher e a filha de Drummond.

          A história se passou não muito tempo após sua mudança para o Rio, em 1934, e permaneceu na sombra durante 25 anos – até 1959, quando, na crônica “Vila”, Drummond reuniu lembranças de sua primeira residência carioca. E mesmo aí não contou grande coisa, limitando-se a espremer a bizarra ocorrência em pouco mais de quarenta palavras. O inesperado visitante, informou então, era

 

um sujeito que se declarou irmão de Ribeiro Couto, reticente, noturno, tinha matado um homem em São Paulo, viera sutil e ia meter o pé no mundo; precisava de cama e algum dinheiro, e desapareceu na madrugada; nunca fora irmão do poeta nem matara ninguém.

 

Um exemplar do Correio da Manhã contendo a crônica atravessou o Atlântico e foi lido em Belgrado, a capital da antiga Iugoslávia, onde o poeta paulista Ruy Ribeiro Couto, amigo de Drummond desde a década de 1920, era o embaixador do Brasil. Pasmo total. “Carloto”, pôs num bilhete o diplomata, “que história é aquela de um ‘irmão’ alegadamente meu, a pedir cama e mesa em sua casa?”

          Em resposta a Couto, Drummond principiou se desculpando pelo fato de que, um quarto de século depois da bizarra ocorrência, “pormenores divertidos” tivesse se esvaído. Mas o essencial da história, acrescentou, estava bem vivo na memória. Ela começou com o telefonema de um desconhecido que, depois de se apresentar como sendo irmão mais moço de Ribeiro Couto, pediu conversa urgente, mas não no Ministério da Educação e Saúde Pública, onde Drummond era chefe de gabinete: queria ir à casa dele, naquela noite. E lá foi recebido.

“Contou-me uma história complicada”, relatou o escritor mineiro na carta a Ribeiro Couto:

 

Trabalhava em São Paulo, num laboratório, creio que na Faculdade de Medicina. Desentendeu-se com um colega e enfiou-lhe uma pequena espátula na barriga; o outro foi para o hospital e dias depois morreu (referia-se à morte como a um acidente remoto e sem relação direta com o gesto dele). Inquérito, pronúncia, prisão decretada, fuga de São Paulo; lembrou-se de procurar-me, como amigo de você, para ajudá-lo a sumir no sertão. Jantou conosco, dormiu no escritório, dei-lhe um livro para ler em viagem, e pela madrugada, como prometera, sumiu.”

 

Drummond disse ter ficado emocionado ao ver-se “depositário” da confiança” do fugitivo: “Prometi guardar segredo de morte, e guardei-o.” Decidiu não relatar o caso nem mesmo a Ribeiro Couto, “a quem desejava manter distante desses embaraços comprometedores.”

Muito tempo depois, prossegue Drummond,

 

conversando com o nosso Rodrigo Melo Franco [de Andrade], falou-me ele de um sujeito que também lhe telefonara, dizendo-se irmão de Ribeiro Couto; Rodrigo pusera em dúvida essa condição, e o tal não insistiu, deixando de procurá-lo. Então, contei tudo e rimos muito da história. Eu e minha família havíamos pois passado a noite, lá em casa, com um indivíduo imaginoso e que revelara um conhecimento razoável da vida e obra de você; era simpático e não levou nada de lá; além do livro e do pouco dinheiro que pude oferecer-lhe. Como você vê, não abusou muito da falsa identidade. E devo mesmo alguma coisa a ele: a sensação de abrigar um foragido da justiça, o mistério... foi engraçado. Você nunca teve notícia desse tipo?”

 

Detalhe: o poeta Ruy Ribeiro Couto era filho único.

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