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O dia em que o general Drummond foi expulso

          Por absurdo que hoje possa parecer, houve um dia, faz pouco mais de um século – foi em outubro de 1919 – que os jesuítas do Colégio Anchieta de Nova Friburgo, no Estado do Rio, botaram porta afora o melhor aluno da Divisão dos Maiores, um adolescente de 17 anos recém-completados, de nome Carlos Drummond de Andrade. “Insubordinação mental” foi a razão invocada para defenestrar aquele que era, num punhado de disciplinas, “general”, no mínimo “coronel” – logo eu”, dirá ele no final da vida, “o menos general dos indivíduos...” – conforme a esquisita distinção reservada aos estudantes que alcançassem as notas mais altas.

Diante de alunos e mestres, o reitor do Colégio Anchieta, padre Justino Maria Lombardi, fulminou o “74”, número de ordem pelo qual o jovem Carlos era conhecido, declarando-o “indigno de figurar nesta casa” – e lhe apontou o olho da rua: “Arrume seus livros e vá embora!”

          Horas mais tarde, Carlos Drummond de Andrade – que durante dois anos se destacara também pelos textos que publicava na Aurora Colegial, o jornalzinho dos alunos da Divisão dos Maiores – embarcava no trem que o levaria a Belo Horizonte, e dali a Itabira, sua cidade natal. No início da viagem, teve o consolo fugaz de uns olhares trocados com uma bela menina, até que ela e sua mãe desembarcassem na escala de Três Rios (então Entre Rios), devolvendo o rapazinho a uma tristeza tão espessa que dela ficaria um travo para sempre.

“A saída brusca do colégio teve influência enorme no desenvolvimento dos meus estudos e de toda a minha vida”, escreverá o poeta anos depois, já conhecido e reconhecido na paisagem literária de seu tempo. “Perdi a Fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam.” Drummond nunca mais voltou a um banco escolar, a não ser durante os três anos em que, para dar uma satisfação ao pai, que o queria formado em alguma coisa, frequentou numa escola livre de Belo Horizonte um curso de farmácia – profissão que jamais exerceria. Escolhido por ser o de menor duração, chegou a se diplomar, no dia de Natal de 1925, com o absurdo adicional de ter sido, ele, um tímido, o orador da turma.

Mas que “insubordinação mental” foi aquela, da parte de um aluno cujas demasias praticamente se resumiam ao fato de haver declarado aos colegas, no início do ano letivo de 1918, com certeza para impressioná-los, que era um “anarquista”?

Não se tem notícia de ato de indisciplina que tenha praticado nos dois anos em que foi interno do Colégio Anchieta. Às vésperas de terminarem as aulas, no final de 1919, com aprovação já garantida, o “74” fez uma brincadeira qualquer numa aula de português, e o professor Guedes o pôs para fora da sala. O estudante não chegou a se preocupar com a punição, pois ser expelido de uma aula era algo corriqueiro no colégio.

Na segunda-feira seguinte, porém, reunida a turma para a rotineira avaliação semanal, o “74” recebeu em comportamento – quesito importantíssimo no Colégio Anchieta – a nota 4. Não exatamente: nota 4, sublinhou o padre-ministro, “por comiseração”, levando-se em conta o fato de que seu comportamento era, até então, considerado “razoável”. Sentindo-se humilhado, Carlos Drummond de Andrade (que, aliás, ainda não usava a preposição “de”, inexistente em seu registro civil) escreveu uma carta ao padre-ministro, reivindicando uma nota justa, “sem comiseração.” Foi o bastante para que a direção do colégio decidisse expulsá-lo.

Embora chocado, o “74” já se conformara com o inelutável quando, na sua última noite no internato, o padre-reitor mandou chamá-lo. Contará numa entrevista, seis décadas depois: “Eu me lembro que havia uma luz esverdeada, e ele, muito doce: ‘Meu filho, por que você foi fazer isso...’”. Sua saída do colégio estava decidida, mas o impacto da expulsão na família Drummond de Andrade poderia ser amenizado: se o “74” escrevesse uma carta ao professor Guedes, pedindo desculpas, propôs o padre-reitor, não diria a seu pai que ele tinha sido expulso.

Assim foi feito – mas o conteúdo da mensagem que o padre Justino Maria Lombardi enviou a Carlos de Paula Andrade, aos cuidados do filho, era bem outro: dizia que, por seu temperamento, no ano letivo seguinte o aluno Carlos não deveria voltar ao colégio. “Essa foi a carta que levei para meu pai”, contará ele na altura de seus 80 anos de idade, “o compromisso que aceitei e que me deu a maior amargura.”

A mágoa regurgitaria algumas vezes ao longo da vida, em entrevistas e em pelo menos uma crônica, “Os gregorianos”, publicada no Correio da Manhã em 1954 e incluída três anos mais tarde na coletânea Fala, amendoeira. Nela, Drummond transparece nos traços de um personagem que, tendo recebido convite para uma festa de sua antiga turma no imaginário Colégio Gregoriano, nem pensa em comparecer. “Não posso aderir às comemorações”, explica: “Não sou apenas um ex-aluno do famoso Colégio Gregório. Sou um aluno expulso, e com que cara ia voltar lá, depois do que me aconteceu?” Seu interlocutor, com bonomia, sugere que ele vá, sim, para festejar o aniversário, não de sua entrada no colégio, mas de sua expulsão, dois anos depois. E argumenta: “Nada mais é triste ou alegre depois de um longo período, tudo é matéria comemorativa, e viver é apenas ter vivido.”

Não se fica sabendo se o argumento conseguiu fazer a cabeça do personagem. O que se sabe é que, na vida real, Carlos Drummond de Andrade, a quem não faltou convite, nunca mais voltou a pôr os pés no Colégio Anchieta de Nova Friburgo.