• Textos

Duelo de poetas

Um dos prazeres deste pesquisador, em meio à trabalheira para escrever uma biografia do maior poeta brasileiro, é juntar informações catadas aqui e ali, e com elas montar histórias tão interessantes quanto divertidas.

Um exemplo? Andei ultimamente repassando os lances de um duelo memorável, travado, faz quase 60 anos, por Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes. Contenda verbal entre cavalheiros que desde sempre se gostavam, cada qual defendendo, com elegância e denodo, as respectivas preferências – no caso, por divas de primeira grandeza do cinema, Drummond devoto da inescrutável Greta Garbo, Vinicius adorador, senão do talento, das legendárias pernas, “longilíneas e luminosas”, de Marlene Dietrich.

Eram paixões antigas. Já em 1930, aos 27 anos, num jornal de Belo Horizonte, Drummond dedicava crônica ao “fenômeno Greta Garbo”. No extremo da vida, um de seus últimos poemas, recolhido no póstumo Farewell, foi por ela inspirado: “Agora estou sozinho com a memória/ de que um dia, não importa em sonho,/ imaginei, maquiei, vesti, amei Greta Garbo”. Entre um escrito e outro, na década de 1950 o cronista serviu aos leitores uma deliciosa fantasia: no ano de 1929, enfastiada do estrelato, a deusa teria entrado na pele de imaginária Miss Gustafssom, naturalista sueca que, em sua errância pelo mundo, deu com os costados em Minas Gerais, onde, sob impermeável sigilo, passou dias e dias na companhia exclusiva de dois jovens poetas, Drummond e Abgar Renault.

Vale a pena ler a história toda, contada nas duas crônicas que abrem essa delícia que é Fala, amendoeira, um clássico de 1957, até mesmo para descobrir que o recatado Carlos Drummond de Andrade teve seus momentos de Macunaíma...

Não menos fantasista, Vinicius revelou, em 1951, que na juventude vivera uma paixão nos braços (e pernas, imagina-se) de Marlene Dietrich, correspondida o bastante para que o Anjo Azul voasse de Cingapura ao Rio e se casasse com o jovem poeta na igrejinha da rua Lopes Quintas, “apesar”, diz ele, “dos protestos da minha mãe, que a achava meio vigarista.” Talvez fosse mesmo, pois anos depois, num night club em Hollywood, Marlene simplesmente o ignorou, entretida que estava em papo com um velhinho. “E casada comigo, leitor, casada comigo...”, gemeu o esposo traído e abandonado. Quanto a Greta Garbo, que na vida real ele conheceu numa recepção em Paris, essa não lhe concedeu mais que “um olhar de salmão defumado”, antes de virar-se para o garçom e pedir uma vodca.

*

Comparável a uma guerra do melhor bombom, o embate entre os dois poetas transcorreu em meados de 1959, nas páginas dos jornais cariocas onde escreviam. O primeiro disparo partiu de Drummond, na iminência da chegada de Marlene Dietrich ao Rio de Janeiro, onde a dona das legendárias pernas faria ouvir a sua voz miúda no Golden Room do Copacabana Palace. “Pensei em convocar a Sociedade dos Loucos Mansos Apaixonados de Greta Garbo para uma assembleia geral”, escreveu o poeta mineiro, suspeitando de “provocação” – nada menos que uma tentativa de remover a atriz sueca do topo do pódio da cinematografia, para ali entronizar a alemã pernuda.

“Sem querer desfazer em seus talentos”, esbravejou ele, Marlene “era antes de tudo uma fotogenia a serviço de um bom diretor, Joseph von Sternberg, e, depois, não chegou a ser mais do que isso.” E foi adiante: “O mito esboçado por Marlene, se mito havia, era puramente exterior, baseado em jogos de luz e na tentativa de idealização de um pormenor anatômico”. Já em Greta Garbo, contrapôs, “o mito golfava da personalidade inteira, com a energia sutil de um fluido, independente da boa ou má fortuna das interpretações”. Tão grande era o abismo entre as duas damas que Drummond desistiu de convocar a sociedade de adoradores da Garbo, e, condescendente, deu de ombros: “Dona Marlene, a senhora por vir, pode vir. Que mal faz?”

Não tardou, na trincheira oposta, o troco de Vinicius: “O que o poeta diz, ó marlenófilos, ou melhor, insinua, é que não há sequer motivos de apreensão para os garbófilos do Brasil ante a vinda do Anjo Azul à nossa querida e desventurada cidade”. E prosseguiu: “Apesar da minha velha e grande ternura pelo poeta, fui obrigado a ingerir dois tranquilizadores, de tal modo ferveu-me o sangue, em justa cólera.” Medicado, partiu para o revide: “Não adianta a sua pseudobenevolência, que eu aqui traduzo como medo pânico diante do fato de que, em breves dias, deverá pisar a pista do Galeão, no esplendor de seus 50 anos, a Divina Alemã”, enquanto “a Fugidia Sueca, dos seus esconderijos da Côte d’Azur, estará roendo as unhas de despeito, ela cuja beleza não abalança ninguém mais a contratá-la, nem como garota-propaganda”.

Também não demorou o contragolpe de Drummond, no que foi, ao que se saiba, o último capítulo da troca de amáveis cuteladas. Sob a forma de uma “ata” do Conselho Supremo da Sociedade dos Templários de Greta Garbo, reunido em sessão extraordinária sob a presidência do garbista Manuel Bandeira, disse Drummond, na condição de secretário ad hoc, “lamentar que o grande poeta Vinicius de Moraes, pela primeira vez na vida, haja perpetrado um ato antipoético, desconhecendo ou menoscabando o mito Greta Garbo, de notória e universal irradiação, reconhecido pelo consenso geral”. Diante do quê, concluiu o secretário, deliberou o Conselho Supremo “recusar qualquer validade ao paralelo tentado pelo poeta entre duas pessoas físicas, suas maneiras de cruzar as pernas e seus temperamentos, quando comparou sem propósito e sem fundamento crítico uma mulher (a Sra. Marlene Dietrich) com uma pura e nascente abstração (Greta Garbo)”.

p.s. Gozador, Drummond certa vez criou uma personagem que morava embaixo de um viaduto no Rio de Janeiro, onde era conhecida como “Marlene Garbo”. Por que esse apelido, quis saber alguém que por ali passou. “Porque ela tem as pernas da Marlene Dietrich e o jeito da Greta Garbo”, explicou um outro morador de rua – e comentou: “A combinação é genial, sabe? Tem vezes que a gente chama ela de Margá. Santa mulher. Já teve os tubos, viajou pelaí, não guardou nem pinta de grã-finagem”.

(Por favor, não se contente com esta notinha. Vá correndo a “Viadutos”, no livro De notícias e não notícias faz a crônica.)