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O poeta e o estilo

[Publicado em O Estado de S. Paulo, 06/12/2011]

 

"Todas as meninas estão andando de boina caída na cabeça, e estão cada vez mais irresistíveis".

Quem disse isto? Não, não foi um colunista de moda — foi um poeta. Deve ter sido, então, um menestrel meio lascivo e mundano, alguém como Vinicius de Moraes, que já passado dos 60 ousava batas e macacões juvenis.

Nada disso. A observação é de Carlos Drummond de Andrade — sim, ele mesmo, aquele homem discreto que dava a impressão de ter atravessado todos os seus 84 anos de vida metido em inexpressivos paletós.

Houve um momento, é verdade, aos 20 anos, em que o chamaram de dândi num jornal de Belo Horizonte. E outro, aos 40, em que, numa visita à capital de Minas, fez cair o queixo de um grupo de jovens aspirantes à literatura. “CDA não se lembra mais de seus alinhadíssimos sapatos de camurça”, escreverá muito mais tarde um deles, Paulo Mendes Campos, “mas nós, os mineirinhos da época, salvamos do olvido a elegância sóbria do escritor”.

Foram raras, porém, as licenças indumentárias na vida de nosso maior poeta, o mais das vezes rendido à sisudez do guarda-roupa dos machos de seu tempo, sem nada na figura física que chamasse atenção — a não ser, quem sabe, a rigidez corporal cristalizada no colégio de padres. Quem conviveu com ele há de se lembrar da figura travada que em rapaz lhe valia gozações quando passava em frente a uma república de estudantes: “Abana o braço, moço!”

Os íntimos falavam de um Drummond bem diverso, um Drummond chapliniano que aos 80 anos ainda se permitia uma cambalhota no soalho da sala para divertir uma criança. A filha, Maria Julieta, evocou um pai brincalhão que em sua companhia gostava de perambular catatonicamente pela casa a murmurar palavras desconexas, para desespero da mulher, Dolores. E que mais adiante fascinava os netos com a “mágica” de tirar os dentes, aquelas “dentaduras duplas” cuja chegada lamentou num poema célebre.

Para vestir-se, contudo, já se disse que ele era bem convencional – daí o pasmo de alguns quando Ronaldo Fraga foi buscar inspiração em Drummond para criar, em 2005, uma de suas mais festejadas coleções, “Moda, roupa e tempo”. Em entrevista no Roda Viva, ele não hesitou em pespegar no poeta o rótulo “estilista”.

Ora, tem tudo a ver — basta atentar ao que mais importa, à poesia altíssima que Drummond destilou em verso e prosa e que, mesmo quando o poeta olha para dentro de si, reflete obsessivamente o mundo em torno. Sua matéria, deixou claro no poema “Mãos dadas”, era “o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. Em sua proverbial caramujice, ele era um homem antenado. “A pessoa mais bem informada do mundo”, disse a escritora Marina Colasanti do senhor às vésperas de completar 75 anos. “Deve estar sabendo o que se vai usar neste verão.”

Certamente sabia – e já era assim na juventude, quando, assinando-se Antônio Crispim ou Barba Azul, comentava em crônicas a moda solta nas ruas de Belo Horizonte entre 1930 e 1934, ano de sua mudança para o Rio. Nada lhe escapava. A tal boina, por exemplo, capaz de “virar o juízo do bicho-homem, o mais ridículo e o menos feliz dos bichos”, e que recebeu dele esta avaliação: “Se empresta a todas as moças um ar de colegial, é porque as torna mais moças ainda, e portanto não há gorro melhor do que esse”. Não lhe escapou tampouco o revolucionário chapéu jonny-cap, “grave ou ingênuo, correto ou amolecado, misterioso ou simples”, igualmente capaz de fazer a rapaziada perder a cabeça.

Um dia reparou que as pernas femininas estavam menos à mostra, mas que essa não era, felizmente, a única tendência da temporada: “O diabo da moda tira em uma extremidade o que acrescenta na outra, e eu estou vendo decotes que anulam a ação pacificadora das pontas compridas dos vestidos”.

Impaciente, deplorou o atraso de seis meses com que as novidades desembarcavam naquela provinciana capital de Minas — e sugeriu: “Poderemos atrasar doze meses exatos, e então a moda belo-horizontina deste ano ficará perfeitamente sincronizada com a moda carioca do ano passado”.

Já bem maduro, o poeta seguia de olhos postos na passarela da vida — e podia concentrar numa frase décadas de sabedoria: “A moda é passageira, como as pessoas, mas ressuscita, e elas não.”

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