• Por Humberto

Entrevista com Drummond, parte 2

Segunda parte da versão integral da entrevista feita por Humberto Werneck com Carlos Drummond de Andrade, no apartamento do poeta, na rua Conselheiro Lafaiete, 60, Rio de Janeiro, para a revista IstoÉ, no dia 11 de abril de 1985.

 

HW – E o jornalismo na sua vida, que significou, significa?

CDA – O jornalismo foi muito importante na minha vida. Foi realmente fundamental. Eu tenho duas experiências fundamentais na minha vida. A de jornalista e a de funcionário público. Das duas, eu digo a você com sinceridade: prefiro a de jornalista. Eu fui jornalista de banca lá em Belo Horizonte, redator-chefe de jornal, um jornal muito primitivo nos anos 1920, quase 30, 28, 29, 30. Era um jornal ainda muito primário, mas tinha aquela força, aquela emoção de você fazer o jornal, sentir que o jornal estava se fazendo, estar ali em contato imediato com as oficinas do jornal – não se fala em gráfica naquele tempo, era oficina. Composição manual, imagina você, tipo, letra por letra. E eu sentia aquela vibração, ficava até altas horas da noite fazendo jornal e esperando telegrama do Rio, porque o nosso serviço internacional vinha do Rio de Janeiro. E não era direto pra nós. Vinha para o jornal oficial do Estado, que nos cedia o serviço telegráfico. Mas aquilo era uma emoção muito grande e era um jornal feito com os meus companheiros literários. Era o João Alphonsus, era Emílio Moura, era Cyro dos Anjos, todos os escritores, poetas do tempo. Então a gente tinha uma camaradagem muito grande, afinidade muito grande entre nós, e eu distribuía as tarefas com muito prazer. Ah, tinha outro também, Afonso Arinos de Melo Franco. Aliás, o Afonso Arinos se queixa muito de mim, diz que eu o oprimia muito. Eu não oprimia o Afonso, não. Ele sempre está dizendo isso, e eu quero retrucar. Gosto muito do Afonso, meu velho companheiro e amigo. Acontece que ele era um redator distinto. Ele tinha uma formação literária muito boa, era muito inteligente e escrevia muito bem. Então eu explorava o Afonso, como eu explorava um redator de maior capacidade literária e jornalística. Quando havia lá, por exemplo, uma comemoração do Tiradentes, havia a discussão de um ponto de vista qualquer mais elevado de política ou de sociologia, filosofia ou coisa que o valha, era o Afonso que tinha que bater. Crítica literária era ele quem fazia. E como ele estava acostumado à doce vida, não queria trabalhar muito, então se queixava de que eu o oprimia. Mas, não. Eu tirava dele o que um bom editor de jornal, um bom redator-chefe tira de um jornalista.

HW – O senhor está afastado hoje da crônica, atividade que exerceu durante muitos anos...

CDA – A crônica eu fiz durante 30 anos, no Rio.

HW – Essa palavra direta com o leitor lhe faz alguma falta?

CDA – Eu sinto saudade. Agora, realmente falta, não sinto não, porque eu terminei de escrever espontaneamente. O jornal queria até discutir comigo, queria me manter, a título... enfim... uma vez ou outra. Quando eu deixei, foi porque senti que já havia realizado tudo aquilo que eu podia realizar em trabalho jornalístico. Daí por diante, seria repetição. Então, pra me dar essa folgazinha, essa vadiação durante três manhãs por semana, eu deixei de escrever. Mas sinto saudades, porque há pessoas generosas, pessoas gentis que encontram comigo e dizem: “Quando é que você volta? Estou sentindo falta da sua coluna.” Durante anos houve uma espécie de ligação com o leitor, principalmente com as mulheres. As senhoras. Não é namoradas, não – senhoras, pessoas até idosas, que gostavam de ler aquilo e se animavam, me telefonavam, me escreviam... Dava um certo prazer sentir que aquilo que você escrevia por obrigação de certa maneira atingia os outros e agradava. Eu imagino sempre o meu leitor na hora do café, entre 7 e 8 horas da manhã, comendo, passando manteiga na torrada, ou no pão, tomando xícara de leite ou chá, lendo a crônica e rindo, sorrindo. Eu já vi mais de uma vez no ônibus, a pessoa sorrindo, lendo uma crônica minha no jornal. Ele não me conhecia, eu sentado assim do lado, o coração apertado, pensando – o que é que ele vai fazer? Se ele ler o título e a minha assinatura e virar logo a folha, eu vou ficar muito infeliz, até vai me dar vontade de ir embora. Mas não, ele parou e leu, de vez em quando deu um sorriso. Isto, a meu ver, é a maior recompensa, que o cronista pode ter. É saber que as pessoas estão interessadas no que ele escreve.

HW – Já sem a obrigação de escrever três crônicas por semana, como ficou a sua rotina?

CDA – Levanto cedo – quer dizer, agora eu já me permito levantar às 8 da manhã, porque até então a campainha da consciência batia às 7 horas. Dava 7 horas, eu tinha que levantar, lia o jornal, atentamente, pra ver se tirava matéria de crônica. Se não tirava, inventava, ficava pensando no que podia ser. Às vezes saía umas bobagens, outras vezes o assunto era muito complicado, então eu me permitia vadiar e tirava de mim mesmo. Dizem que às vezes essa crônica meio fútil é a melhor, aquela que desperta mais interesse no leitor. Pura vadiação mental, conversa fiada com o leitor. Hoje, posso ficar quieto em casa, lendo, escrevendo cartas, ou então sair um pouco, andar muito na rua, aproveitando a ocasião de ir ao banco, de ir ao correio, de ir à ABI [Associação Brasileira de Imprensa], pra ter contato com a humanidade, pra não ficar muito fechado em copas.

HW – O que é que o senhor lê hoje em dia?

CDA – Eu leio pouco. Releio muito. Releio sempre Machado de Assis, que é uma cachaça na minha vida. Devia dizer o meu uísque, não? Mas não, é a minha cachaça. Releio os poetas franceses, releio os clássicos, portugueses, franceses. A minha formação foi toda portuguesa e francesa, de modo que dou mais preferência a esses livros do que aos de cultura inglesa. Gosto mais de reler. Quando descubro um livro novo, que me interessa, que me agrada muito, eu leio com sofreguidão. O interesse vai diminuindo pela literatura nova, também.

HW – Por que?

CDA – Quem já viveu muito sabe que é muito difícil você inovar. Às vezes, a inovação é meramente formal, não é uma inovação de fundo. Então, pra ler aquilo, numa linguagem que muitas vezes não é a melhor... Porque hoje nós estamos castigando muito. Antigamente nós castigávamos o estilo, hoje castigamos o português – estamos falando cada vez pior, uma linguagem coloquial pobre, muito resumida, muito mal construída. Então, pra não me dar o desgosto de ler essas coisas, eu prefiro me abster.

HW – O senhor se lembra da última descoberta que fez?

CDA – Não, eu não faço descobertas literárias, eu deixo que os outros façam, sou mais cauteloso. Eu soube agora de manhã da morte da Cora Coralina, que realmente foi uma espécie de descoberta, não minha, mas dos leitores em geral, já no fim da vida dela, nos últimos anos. Parece que essa mulher extraordinária estava praticamente esquecida, ninguém sabia dela. De repente, descobriram-se os versos dela e foi um acontecimento admirável.

HW – O senhor parece muito ligado nos jovens. Como é a sua relação com a juventude?

CDA – A linguagem vem através da leitura dos jornais e das conversas com os jovens, por acaso. Eu não tenho muito contato com os jovens, mas quando tenho, eu procuro aprender com eles alguma coisa. Velho aprende muito com gente moça. O contrário, não. Moço não aprende com velho. Nós aprendemos mais. Agora, talvez seja um traço, não digo de mocidade, que eu guardei, porque eu não guardo nada, mas de infância, um certo lado meio infantil, meio lúdico. Eu gosto de dar cambalhotas. Talvez seja isso que agrade aos jovens. De qualquer maneira, me surpreende muito saber que os jovens se interessam pelo que eu escrevo. Justamente pelo seguinte: com a tendência atual de fazer o ensino de português – nem é mais português, é Expressão e Comunicação da Língua Nacional, um título monstruoso – o português que os rapazes e as moças aprendem agora não é o de Camões, nem o de Rui Barbosa, é o de Fernando Sabino, do Paulo Mendes Campos, do Carlos Eduardo Novaes, esses cronistas atuais, então aí, ah, e o meu também – então isso faz com que... – tenho a impressão de que eles não devem gostar muito, porque... a mocidade de hoje, ela lê menos do que a de ontem. Ela vê e ouve bem, através dos aparelhos de eletrônicos. Mas ela tem pouco hábito de leitura. É natural. Uma pessoa gasta por dia, no mínimo, duas, três horas pra ver televisão. Qual é o tempo que sobra pra leitura? Não sobra nenhum. E a televisão traz informações que você precisa. Você não pode abrir mão dela, mesmo que você não goste de novelas, não goste de programas humorísticos, você tem que ver os comunicados, o que se passou, na hora em que está se passando.

 

(final do primeiro lado da fita cassete)

 

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