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Caminhada — 1

Humberto Werneck

“É comigo mesmo”, pensei, quando a Companhia das Letras me propôs escrever uma biografia de Carlos Drummond de Andrade. Não que me considere a pessoa mais bem equipada que encarar tamanho desafio, longe disso. Simplesmente Drummond é o meu poeta, lido e relido desde a remota adolescência. Mais que qualquer outro, é para mim aquele que pôs em palavras o que não dou conta de dizer. Nas mais diversas circunstâncias, tristes ou felizes, cômicas ou trágicas, lá me vem algum verso de Drummond, e não como adorno, mera citação literária. “Não ser feliz tudo explica.” “Por que Deus é horrendo em seu amor?” Na hora de sair (como o próprio Drummond, 36 anos antes) da cidade onde me sentia asfixiado, quase meio século atrás, o empurrão decisivo: “Por que ficar neste município, neste sobrenome?”

Amarguei a experiência de não ser recebido pelo poeta quando, em 1977, editor assistente da Veja, encasquetei fazer uma reportagem com o gancho débil de seu 75º aniversário. Ele queria distância de gravadores e blocos de notas. Fiz assim mesmo – e não me consolei apenas com o telegrama que recebi do aniversariante: ficou o orgulho de ter feito com nosso maior poeta a única matéria de capa de revista graúda que a imprensa brasileira lhe dedicou em vida.
Estive algumas vezes com Drummond depois que ele, finalmente, se dispôs a receber repórteres. Em 1983, aceitou falar do amigo Pedro Nava, nos oitenta anos do memorialista. Em abril de 1985, concedeu-me esplêndida entrevista para as “páginas vermelhas” da revista IstoÉ. Em mais de uma oportunidade, conversamos pelo telefone – no dia, por exemplo, em que me ocorreu pedir-lhe resenha de um badalado livro de cozinha mineira. Esquivou-se com drummondiana graça, alegando que o aval de um homem magro seria péssima recomendação para uma antologia de receitas.
Nosso último contato foi pelo correio, em outubro de 1986, menos de um ano antes de sua morte, quando lhe escrevi propondo uma série de entrevistas das quais resultaria um livro. Numa resposta manuscrita, Drummond teve a delicadeza de dizer que chegou a considerar minha proposta, mas que achou melhor recusá-la, na certeza de que vivera uma vida desinteressante, vazia de peripécias. Tinha sido, acrescentou, um rond de cuir (literalmente, rodela de couro), expressão francesa que no final do século xix designava os funcionários públicos, por causa das almofadas que tornavam menos dura sua jornada de burocratas.
Não sei o que ele pensaria se soubesse que tocou a mim a empreitada de contar a sua vida, e que seu futuro biógrafo não está nem um pouco convencido de que Carlos Drummond de Andrade tenha sido um tedioso “rond de cuir com fumaças literárias”, como alegou em sua carta. Ao contrário: dados os primeiros passos para escrever sua biografia, já não tenho dúvida de que se vai contar a vida de alguém que foi, além de imenso poeta, um personagem fascinante.

 

Humberto Werneck com Carlos Drummond de Andrade no apartamento dele, em abril de 1985.

 

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